Histórias e Causos




NO REINO DA BICHARADA


Destaque cultural de EDICLAR COSTA*







No Brejo chegou um Baiano
com seu carro todo quebrado
quando soube o nome do povo
ficou todo apavorado.

Quero consertar a carroceria
e pago a dinheiro.
Tem o grilo marceneiro
e o canário carpinteiro
Preciso de um mecânico
que seja um bom artista.

Temos o coelho e o tatu
que também são motoristas.
Preciso de um pinhão
que seja um bom vaqueiro.
Temos vários e bons,
O Peba é o mais ligeiro.

Me ensine uma pensão
que não seja muito cara.
O senhor vai dormir bem
no hotel do capivara..
Garoto me compre carne
que pra comer não tenho dó.

Aqui tem dois açougues,
do João calango e Mundim socó.
O baiano tomou a pensar...
Minha cabeça não tá com nada.
Pensei que era uma cidade,
mas, é o reino da bicharada..

Chegou um homem da terra;
O senhor tá com a razão.
Aqui têm mais bichos,
Vou te dar explicação.

O Perú é butequeiro,
O Galo é funcionário.
Codorna é lavrador,
Bode e Cocá são bancários.

A vaca é estudante,
Boi tungão é cambista.
O macaco é aposentado,
Anu Branco é eletricista.

Garrincha é construtor,
Marreca é advogado.
Carrapato, alfaiate,
O cavalo é soldado.

O Leão é chofer de praça,
A Onça é pedreiro.
No meio da bicharada,
O Veado é o cozinheiro.

Tem o porco Baé
Tem o bravo Zabelê.
Tem a família muriçoca,
Que é osso duro de roer.

Tem o Bugi e o Gatão,
E outro bicho arrogante.
Por ser o maior quadrúpede,
Eurípedes é o elefante.

Tem o belo Melete,
O que leva boa vida.
Tem no Banco do Brasil,
seu alimento, a Formiga.
Temos bichos muito mansos,
Mas, tivemos bicho tarado.

Até o Alcidinho Saruê,
Já quis ser até deputado.
Quem anda em linha reta,
não pensa em caracol.
Já tivemos um jacaré,
que foi juiz de futebol.

Aqui já teve de tudo,
sem mentira ou exagero.
Pois teve até piranha,
que foi grande sanfoneiro.

Tem um bicho infeliz,
que deve ser observado,
é o Sapo Cururu,
dentro do Banco do Estado.

Tem o Periquito e Curió,
O Pombo, a Galinha e o Camarão.
São jogadores de futebol,
sem nenhuma gozação.

O gatinho, o Passarinho, o pato
e duvide quem quiser.
Tem o bicho esquisito,
o feio Caburé.

Tem um bicho que sofre muito
que pula e é Cururu.
O chefe dos Catopês,
foi Manoel Urubu.
Os bichos tomaram conta
e não tem mais salvação.

Até o gerente da Caixa,
Foi o João Bisourão.
O Celino é o perigoso
não precisa fazer enredo.

E o Cobra Cascavel,
todo mundo tem medo.
Gente aqui não vale nada,
Os bichos somente tem valor.
Até Paulo Preá,
Tira onda de doutor.

O Baiano tornou a brasar.
Não quero ser indecente,
nessa terra só tem bicho,
e com figura de gente.

Já estou dando no pé,
eu sinto muito horror.
Se tiver de voltar um dia,
Trago cachorro e caçador.

O homem da terra respondeu:
O senhor sofre um engano,
Já tivemos em nosso meio,
um famoso PORCO BAIANO.


* Este conteúdo literário, narrado por Ediclar Costa, figura popular e tradicional da cultura da cidade, retrata uma visão humorística da sociedade brejeira, focalizando pessoas do município, numa mistura de apelidos e críticas às suas representações floclórícas, na chamada constituição do Reino da Bicharada, que acreditem vocês, não termina por aqui. Esta bicharada, papel exclusivo de uma comparação e designação do reino animal, fora focalizada na sociedade, em meados dos anos 70.
ASSIM ERA FRANCISCO SÁ


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Colaborações de Enoque Alves Rodrigues


Enoque Alves Rodrigues vive em São Paulo, é brejeiro de nascimento e convicção. Atua na área de engenharia e é escritor, com dois livros a serem lançados, (Liderança Conquistada e Brejo das Almas em Crônicas), Colunista, Historiador e divulgador voluntário de Francisco Sá, Brejo das Almas, Minas Gerais, Brasil.

Link Para os Blogs do Enoque:  Joias do Brejo / Blog do Enoque


Feliciano Oliveira


O conteúdo físico que possuo sobre Feliciano Oliveira, resultado de pesquisas insones dos velhos tempos em que “ainda se compulsavam livros”, é tão robusto que mesmo tendo deixado para referi-lo por ultimo, nesta série com a qual considero finalizada minha modesta colaboração ao povo de minha terra, ainda tive de reduzir para não exceder as 1240 palavras deste espaço e não ofuscar personalidades anteriormente mencionadas de igual importância para a nossa cidade de Brejo das Almas ou Francisco Sá. Filho do fazendeiro e político de renomada liderança local da UDN, Lauro Oliveira, Feliciano nasceu no Município de Brejo das Almas onde iniciou sua longa vida pública a qual sempre esteve voltada para a qualidade. Ao contrário de alguns que o antecederam na Prefeitura do Brejo, assim como de uma boa parcela de seus contemporâneos, Feliciano sempre foi de fidelizar a excelência em todas as suas realizações.


Menino, ainda, colaborava com o pai na administração da produtiva fazenda quando já sonhava ter em mãos ás rédeas dos destinos do Município de Francisco Sá. Com doze anos, a contragosto, foi enviado para estudar em Montes Claros e Depois Belo Horizonte, retornando ao Brejo depois de concluir seus estudos. Determinado a seguir carreira na politica, estabeleceu como Quartel General a própria fazenda do pai. Dali ele disparava petardos á políticos de renome e farta projeção local informando sobre sua intenção de se candidatar a algum cargo eletivo por onde certamente conseguiria ser útil a sua Cidadezinha de Brejo das Almas que amava. Feliciano, assim como a maioria de nós, Brejeiros, era um eterno inconformado com certos privilégios que outras cidades vizinhas tinham em detrimento de nosso Brejo das Almas ou Francisco Sá.


De seu posto de observação na fazenda encravada entre as montanhas Brejeiras refletia e matutava, com inquietude juvenil, o quanto a Política Social havia sido cruel para com sua terra e sua gente. De vida simples, mas abastada com aquilo que a terra mãe produzia, não conseguia entender e aceitar passivamente os motivos pelos quais poucos tinham tanto enquanto muitos não tinham nada. De onde, meu Deus, havia brotado tanta miséria?


- “Prefeito Feliciano, o senhor só vai conseguir ajudar a sua cidade e o seu povo se for um excelente prefeito. O Brejo das Almas já teve muitos prefeitos bons anteriores ao senhor e veja, entretanto, onde ainda estamos...” Sonhava!


- “Deputado Feliciano, se o senhor não mudar sua forma de legislar revendo este seu pendor para com os pobres vai ser muito difícil ver aprovado algum projeto seu...” Seguia sonhando!


Feliciano sabia de antemão o quão infrutíferas seriam quaisquer tentativas suas em busca da concretização do sonho de ser prefeito de Francisco Sá sem bases políticas e plataformas sólidas de preferência lastreadas no seio das mais tradicionais famílias do Brejo cuja militância politico administrativa de resultados positivos já se encontrava inquestionavelmente solidificadas desde a fundação do lugar. E disparava os seus petardos em forma de bilhetinhos os quais eram endereçados aquelas famílias que, no entanto, relutavam em aceita-lo. Quando, finalmente, conseguiu romper a resistência ao seu nome no seio dos “Dias”, “Pereira”, “Penna” etc., soube que o mesmo não fruía de receptividade fácil entre os “Silveira”. Ele tinha pedigree no sangue, pois o pai era político, mas nenhuma tradição ou experiência que o identificassem com os anseios da maioria. Necessitavam, ali, de alguém com mais cabedal de conhecimento e comprovada eficácia administrativa. As dificuldades e mazelas do Brejo exigiam muito mais que um jovem idealista e sonhador. A história dá como tutor político de Feliciano certo cônego de nome Sebastião. Mas como veremos mais adiante, ele apenas o iniciou nesta arte, abrindo-lhe ás portas ao utilizar-se de seu valioso carisma e prestigio com os quais lhe apresentou junto aos “Silveira”. Tutor do jovem Feliciano mesmo foi o grande Enéas Mineiro de Sousa, pois, uma vez convencido dos reais propósitos de Feliciano, não mediu esforços no sentido de ajuda-lo a torna-los realidade.


Orador eloquente, capaz de levar ás lágrimas multidões de pessoas, muito bem articulado, pausado no falar, cuidadoso com as palavras e convincente, aos poucos Feliciano conseguiu conquistar a confiança de todos inclusive do próprio Enéas Mineiro, uma sólida e poderosa liderança local que, apenas para prestigiar Feliciano, cedeu-lhe a “cabeça de chapa” numa demonstração de humildade, generosidade, desapego e grandeza do Capitão, que naquele pleito eleitoral se candidatou a vice-prefeito de Feliciano, tendo ele, Enéas, puxado quase todos os votos que elegeria vitoriosa aquela chapa: Feliciano Oliveira finalmente sagrava-se Prefeito de Francisco Sá (1947-1950) com expressiva votação e o mais importante: o seu vice era ninguém menos que o homem mais poderoso da região, um corajoso e destemido desbravador e empreendedor nato oriundo do nordeste do Brasil tendo de lá saído pobre para trabalhar duro e fazer fortuna no norte de Minas: Enéas Mineiro de Sousa.


O jovem Feliciano tinha boa vontade e coragem para realizar, mas não tinha experiência e nem sempre sabia como fazer. Nos momentos de insegurança e incerteza o capitão lhe dizia: “vai, moço. Faça a sua parte. Coloque sempre á sua frente os nobres ideais que o motivaram e trouxeram até aqui que eu me encarrego de concretizá-los junto com você!”.


Dito e feito.


Realizaram uma excelente e profícua administração na Prefeitura Brejalmina.


No pleito seguinte encontramos Feliciano Oliveira retribuindo ao seu benfeitor a mesma gentileza de outrora. Agora era o próprio Feliciano, experiente e realizador, o vice de outro iniciante na Política, mas imbuído de desejos de mudanças, filho de Enéas, de nome Pedro Mineiro de Sousa (1951-1954). Como da vez anterior, e como não podia deixar de ser, aquela dobradinha reversa conseguiu ser igual ou ligeiramente melhor que a anterior. Obras importantíssimas saíram do papel, materializando-se em benefício da população. Diziam as “boas línguas brejeiras” que administração igual àquela só a do “doutor Jardim.”. Não obstante não ter sido contemporâneo dessas administrações (tinha eu somente um ano em 1954), conheço-as muito bem pelos escritos que li, e, principalmente, pelo que me falava o meu saudoso avô que tinha o vezo de comparar gestões passadas.


As administrações bem-sucedidas de Feliciano Oliveira frente á Prefeitura de Francisco Sá, quer como Prefeito ou vice, proporcionaram ao nosso Município grandes saltos de qualidade rumo ao progresso célere e eficaz guardada as devidas proporções de morosidade das coisas, feitos e fatos inerentes á época. Tanto é verdade que foram suficientes para que Feliciano Oliveira, uma vez mais, ou seja, consecutivamente, aliás, acontecimento este inédito até os dias atuais, conseguisse se reeleger Prefeito de Francisco Sá com excelente votação nos pleitos de 1954 (final de seu mandato de vice), para o próximo período de 1955-1958. Tinha ele neste quadriênio administrativo como seu Vice um gigante e competente homem público, filho de Jacinto, orgulho das Alterosas.


Mais uma vez grandes metas foram batidas e índices de qualidade de vida antes inatingíveis fizeram-se presentes. Feliciano consolidava na Prefeitura do Brejo das Almas os seus sonhos de menino. O ótimo trabalho, a experiência, o reconhecimento e o respeito políticos conquistados lhes credenciavam, certamente, a alçar voos mais altos por outras plagas muito além das fronteiras de seu querido Brejo das Almas. Ali ele poderia multiplicar por milhares os beneficiários de sua luta e empenho em prol dos mais carentes não somente em seu torrão natal.


Foi exatamente o que ele fez. Diga-se, com muito sucesso!


E tenho dito.

Niquinho Farmacêutico



Durante muitos anos existiu na Praça da Matriz uma velha farmácia. Era a única farmácia do Brejo. Ela se localizava exatamente numa esquina a direita de quem observasse do antigo mercado. Seu proprietário era Francelino Dias, mais conhecido como França.

No entanto, com toda certeza, o farmacêutico mais importante do velho brejo das almas, foi, sem duvida alguma, Antonio Ferreira de Oliveira, vulgo Niquinho. Homem simples e educado, polido no trato com seus semelhantes, exímio no manuseio de fórmulas medicamentosas, além de ser possuidor de vasto cabedal cultural que o permitia discorrer sobre todo e qualquer assunto no Brejo das Almas de então.

Alto, magro, meio calvo, este gigante Brejeiro exerceu ali no brejo, várias outras posições de destaque na vida cotidiana do lugarejo, além de sua dedicada lide de farmacêutico.

Uma de suas grandes proezas e prova cabal de indiscutível inteligência e amor a Francisco Sá, ou Brejo das Almas, foi o legado que nos deixou a todos, quando escreveu, a pedido da professora Maria de Jesus Sampaio, o hino a Francisco Sá, o qual, musicado que foi por Corinto Cunha, é até hoje o hino de nossa cidade, sendo sem qualquer sombra de dúvida, o que melhor a retrata, destaca e enaltece, perante os vários povos.

-“Brejo das Almas, ou Francisco Sá. Igual a ti, outro não há”- é o estribilho que mais nos orgulha em qualquer parte do Mundo. Mesmo hoje, -quando sabemos que o nosso Brejo das Almas já não é mais o mesmo, guindado que fora a condição de cidade média e progressista, que seguindo um processo natural dos centros urbanos, trouxe consigo também as mazelas que corroem os mais profundos sentimentos Cristãos e humanitários, principalmente daqueles menos favorecidos pela sorte-, não conseguimos reter nossas lágrimas nem controlar a nossa emoção, ao ouvirmos tão lindo, maravilhoso e erudito hino. Nesse instante como que por encanto, vem-nos à mente a imagem de Niquinho, o grande benfeitor do brejo.

Esposo da senhora Cândida Peres de Oliveira, pai de muitos filhos, entre eles aquela que viria mais tarde revelar ser a que mais dele herdara os traços fisionômicos e culturais, Yvonne de Oliveira Silveira, normalista desde a mais tenra idade, escritora, poetiza e outras mil atividades nas áreas do intelecto, sendo inclusive presidente da academia montes-clarense de letras, etc., a qual ainda na adolescência viria a esposar Olyntho da Silveira, também grande escritor e poeta, filho da terra e de Jacinto e Maria Luiza, além de irmão do grande Geraldo Tito.

A vida difícil não poupa aqueles que dela tentam sobressair com força e dignidade. Com Niquinho e sua prole não foi diferente. Muito sofreu para conseguir prover sua família do sustento necessário e de uma educação esmerada. Logo cedo, para dificultar mais a sua luta, o destino abateu-se sobre a esposa da qual tivera que separar afim de que ela, em Montes Claros, seguisse tratamento de saúde, enquanto Yvonne o fazia companhia no Brejo das Almas.

Niquinho, não obstante a inteligência muito acima da média, era homem como todos nós. E como tal, possuía, além das grandes virtudes, fraquezas naturais a todos os homens e, evidentemente, estas fraquezas quase que o levaram a derrocada ainda na juventude. Muitos eram os traumas que a vida lhes trazia numa fração muito pequena de tempo. Muitas vezes sequer havia absorvido um golpe e lá vinha outro mais forte ainda. Com isso, como disse, quase naufragou na bebida onde encontrava o falso consolo. A tempo, com a ajuda dos filhos e amigos conseguiu se livrar do vicio que no entanto, deixou-lhe algumas seqüelas que viriam cobrar-lhe a fatura mais tarde e durante a velhice.

Por dez anos padecera de doença que viria a tirar-lhe a vida. No entanto, até mesmo nos momentos de dor que a enfermidade lhe imputava, jamais se lamentou da sorte. Nunca fez sequer qualquer lamentação ao seu destino cruel. Sofria calado, com força, coragem, paciência e resignação, virtudes estas próprias dos espíritos intelectualmente elevados que, de alguma forma, já não mais pertencem a esse mundinho.

Em casa de Yvonne e Olyntho, que dedicados e incansáveis lhes proporcionavam todo o conforto material e espiritual em todas as horas, veladamente, deixou esta vida partindo rumo a uma outra quiçá mais justa e menos cruel para com aqueles que a ela se dedicam com pureza de alma, ternura e muito amor ao próximo.

Assim foi, é e será Niquinho, cujo diminutivo é muito pouco para definir o quão grande foi o gigante Brejeiro Antonio Ferreira de Oliveira.

E...

Por vezes, os gigantes também tombam numa esquina qualquer da vida para volverem-se, numa próxima, mais gigantes ainda.

LUCAS DOS INFERNOS


Criado no seio das tradicionais famílias Prates e Sá, de onde provem o Deputado Camilo Prates e os irmãos Francisco e Alfredo Sá, respectivamente, Lucas dos Infernos, escravo que fora lá na Fazenda Brejo de Santo André, Município de Brejo das Almas, hoje Francisco Sá, depois de ter servido ambas as famílias por mais de 40 anos, vivia, finalmente, seus dias de glória. Passava a maior parte do tempo em companhia de “seu Camilinho” como era chamado carinhosamente o Deputado Camilo Prates, que como recompensa pelo muito que o velho escravo Lucas fizera por sua família, como prova de gratidão, não permitia que ele trabalhasse mais. 

Aonde o Dr. Camilo ia, levava seu fiel escudeiro Lucas, um preto alto, magro, de olhos esbugalhados e faces largas. O que mais o destacava dos outros serviçais era a sua presença de espirito e seu astral sempre elevado até as nuvens. 

Exímio contador de “causos”, brincalhão, prestimoso, a todos conquistava com seu largo sorriso. Não havia quem não gostasse de Lucas dos Infernos. Sua alegria em qualquer parte onde ele estivesse contagiava a todos.
No entanto, cortava uma cana dos diabos e, nem mesmo os efeitos etílicos conseguiam mudar sua personalidade. Alias foi num desses porres homéricos que ele recebeu o aditivo “dos infernos” no nome.
Dizia ele em mais uma de suas histórias, essa segundo afirmava, verídica, que após se embriagar teve sonhos assustadores onde de repente se achou em meio ao inferno junto com vários asseclas de Lúcifer. Depois de ele ter passado por “poucas e boas lá nas profundas” quando os capetas iam, finalmente, fechar os portões para mantê-lo encarcerado lá para todo o sempre, ele, assim como num passe de mágica, se despertou daquele tenebroso pesadelo. Foi a partir deste dia que ele teve o seu sobrenome “dos Santos,” substituído por “dos infernos.”

Lucas nasceu na Fazenda dos pais de Francisco e Alfredo Sá em uma época em que a escravidão se achava em plena evidência no Brasil. Ricos e poderosos, porém, os pais de Francisco e Alfredo jamais foram de dispensar quaisquer maus tratos aos escravos sob suas responsabilidades. Foi por isso que mesmo depois de abolida a escravidão no Brasil, a 13 de Maio do ano de 1888, por Sua Alteza, a Princesa Isabel Cristina Micaela e mais um milhão de nomes, quase todos os escravos que serviam os pais de Francisco e Alfredo preferiram continuar com eles. Assim sendo é certo que Lucas dos Infernos embalou, em infância, os sonhos destes dois irmãos, grandes estadistas, orgulho maior do norte das Alterosas.

Servidão e lealdade. Era este o binômio sobre o qual durante toda a vida repousava as relações de Lucas dos Infernos para com seus patrões ou senhores. Tanto em Brejo de Santo André, em casa dos pais de Francisco e Alfredo, como em Montes Claros em casa do Deputado Camilo Prates ou no Brejo das Almas, em companhia deste em casa do Padre Augusto, pois muitas vezes “Seu Camilinho” o cedia para ficar uma temporada com o Padre Augusto no Brejo das Almas, várias foram ás oportunidades que o preto Lucas teve de provar aos seus senhores o quanto lhes era fiel. O orgulho que tinha em servi-los era indescritível. Por isso que ele agora em idade avançada colhia os louros que amealhou durante muitos anos de dedicação e esmero.

Ele se levantava todos os dias lá pelas 8 horas da manhã. Depois de dar umas voltas pelo Centro do Brejo onde, entre um “causo” e outro, manguaçava nos muitos botecos, retornava ao meio dia para almoçar. Puxava uma palha até ás 14 horas e voltava ao Centro para continuar bebericando. Ás 19 horas após passar pela velha Matriz onde se ajoelhava e rezava aos pés do cruzeiro, regressava para casa. O Padre Augusto não se incomodava por este hábito. Isso era irrelevante ou sem muita importância. Lucas não incomodava ninguém. Bastava abrir a boca para contar suas histórias e piadas para que todos caíssem na gargalhada. Isto sim, era o que mais importava. O resto não tinha peso algum.

Naqueles tempos longínquos era prática comum ao dono da casa quando recebia visitas importantes, convidar algum de seus serviçais para contar-lhes algumas histórias ou piadas desde que desprovidas de duplo sentido ou qualquer grau pejorativo. Tais procedimentos, acreditem, retratavam o alto nível intelectual e financeiro com os quais o dono da casa era aquinhoado.

Certa vez se encontravam na casa do Padre Augusto, no Brejo das Almas, o Dr. Honorato Alves, Camilo Prates, Alfredo Sá, Jacinto Silveira, Antonio Ferreira, Francelino Dias, o próprio Padre Augusto e o famoso Jornalista Mário Cassassanta que à época escrevia uma matéria para um Jornal do Rio de Janeiro sobre o Brejo das Almas. Na grande sala de estar, sentados confortavelmente em bancos de couro depois de terem se esbaldado com o angu de fubá com molho de quiabo e brotinhos de feijão de corda, que Wenceslau sabia preparar como ninguém, lá pelas tantas chamaram o negro, velho escravo “aposentado” para contar suas anedotas.

Entrou todo faceiro e gracioso. Sentou-se em meio à roda de visitantes e pôs se a olhar nos olhos do Dr. Camilo e do Dr. Alfredo. Estava à espera de um sinal de ambos para que pudesse iniciar. O sinal não vinha. Por certo que nem o Dr. Camilo tampouco o Dr. Alfredo foram avisados por Lucas dos Infernos dessa sua nova mania. Depois de algum tempo de trocas de olhares sem que o sinal fosse enviado, o Dr. Camilo vendo que a plateia já se achava inquieta, perguntou-lhe:

- E então, Lucas. Não vai começar? Até quando você vai nos deixar aqui sedentos por ouvir suas belas histórias, menino?

- Não posso senhor, respondeu Lucas levando as duas mãos à cabeça. Só poderei começar quando o senhor e o doutor Alfredo me autorizarem. Para tanto basta que cada um pisque seu olho esquerdo, ao mesmo tempo, simultaneamente. Dito isto, estufou o peitoral pra frente, esticou o longo pescoço e arregalou os dois olhões sobre ambos em busca do impossível que não veio, pois por mais que os Doutores Camilo Prates e Alfredo Sá tentassem, não conseguiam sintonizar suas piscadelas. Quando um fechava o olho para piscar, o outro abria, e vice-versa. Depois de longos minutos neste diapasão coube a Jacinto intervir.

- Compadres, por favor, parem com isso! Os senhores ainda não perceberam que este Lucas dos Infernos está tirando sarro de todos nós? O que ele lhes manda fazer, jamais conseguirão. Ninguém é capaz de fazer isso. Foi bem mais fácil para mim, apesar de sabermos o quanto me foi difícil, (o Coronel Jacinto, como bom Mineiro, de quando em vez também se dava ao luxo de colocar em prática o seu Mineirismo), emancipar o Brejo das Almas. Este negro não quer contar história coisíssima nenhuma!

Sábias palavras. Não fosse isso e ambos estariam até hoje piscando um para o outro. Claro, se não tivessem, há muito tempo, partido para o Andar de Cima. Antes que Jacinto fechasse a boca encerrando seu comentário, Lucas dos Infernos já soltava sua diabólica e sarcástica gargalhada seguida da frase que ele sempre utilizava nestas ocasiões: “Peguei vocês, outra vez, seus espertos!”

Em um inesperado efeito dominó, todos os presentes, ao mesmo tempo, no mesmo minuto, no mesmo segundo, na mesma fração de milésimo, em tempo real, simultaneamente, sei lá mais o que, caíram no riso.

- Uai, sô, dirão alguns, porque razão todos eles conseguiram rir ao mesmo tempo, fazendo com facilidade o que certamente seria o mais difícil?

- A resposta veio do próprio sábio Lucas dos Infernos ainda no meio da roda de visitantes ilustres.

- Todos e não somente dois conseguiram fazer o mais difícil por que ninguém lhes disse o que teria que ser feito. É necessário dar ao homem liberdade para pensar e agir, acertar e errar, sem que outros lhes digam o que se deve ou não fazer. É para isso que cada um tem a sua cabeça!

É...

Por vezes, revelar o segredo poderá não ser uma boa atitude. Oculta-lo talvez seja o melhor atalho para se chegar ao êxito. Urge ensinar o ser humano a acertar.

E tenho dito!


BimBim do Mercado




Durante vários anos, por mais de duas décadas, ele chegava, sempre por volta das 6 horas da manhã, sentava-se sobre um velho caixote de verduras e ali ficava por todo o dia, debaixo de chuva e sol. O que ele trazia no caixote para vender no mercado? Nada! Parecia tratar-se de mais um daqueles personagens que a vida de quando em vez trás à baila para prosseguirem caminhando por ela, sem destino algum, sem eira nem beira, ou desprovidos de quaisquer perspectivas e objetivos de alguma relevância. Esses indivíduos que nós muitas vezes do alto de nossa ignorância insistimos em chamar de loucos, tem, certamente, suas missões honrosas a cumprirem aqui na terra as quais nós, no estagio atual em que nos encontramos, as desconhecemos inteiramente.

A todos quantos entrassem naquele tempo no velho mercado de Francisco Sá, Brejo das Almas, “beldade do norte de minas”, era recebido por Bimbim, que sempre educado e cordial, ficava sempre postado à porta de entrada, com um “bom dia”, “boa tarde” ou “boa noite”. “Como estás?” “E a família, como vai?”

Enquanto ele dialogava com as pessoas, o seu cachorro, um vira latas... –uai, sô, você já viu algum desses belos seres desacompanhados de um ou mais cachorros?- de pelo marrom, com duas grandes pintas nas costelas, olhos grandes, sendo um vazado por alguma estripulia do passado distante, lambia as pernas do interlocutor, pernas estas devidamente protegidas por uma belíssima calça boca de sinos a coqueluche da ocasião.

Antonio Maria da Silveira Pena, esse era o nome de Bimbim, que apesar de pomposo, principalmente no que diz respeito aos sobrenomes “Silveira” e “Pena”, posso afirmar, depois de ter realizado pesquisas genealógicas, que nenhum parentesco tinha ele com qualquer ramificação destas famílias tradicionais do Brejo das Almas que ostentam esses sobrenomes.

-Bimbim, de onde você é? Perguntavam-no.

-Sei lá, eu? Respondia sempre. Quando me dei por mim já estava no mundo e minha mãe não viveu o suficiente pra me contar!

-Você conhece algum parente, Bimbim? - Perguntava-lhe outro mancebo curioso por saber as origens do personagem.

-Conheço não! E se existe num me foi apresentado!.

-“Mais onde você mora? Isso sim, você com certeza sabe! -, dizia outro.

-É claro que eu sei. Eu moro lá no Catuni, bem na barriga da serra. É lá que eu tenho o meu rancho lá no sitio, onde crio as minhas galinhas poedeiras, planto as minhas hortaliças, caço preás e pesco os bagrões do são domingos...

-Uai, espera um pouco. Então você é um homem cheio de atividades!

-Sou!

-E com que tempo você faz tudo isso, se passas a maior parte do dia aqui no mercado sentado nesse caixote?

-E o sitio, é seu?

-E porque você não traz verduras e ovos para vender aqui? Sim, porque a gente não lhe vê vendendo nada. Esse caixote está sempre vazio. Aliás, a noite, quando você não está sentado nele, ele está sempre amarrado com uma corrente naquela árvore...

-Você pergunta muito, respondeu Bimbim, aparentando algum desconforto diante daquele bombardeio tolo, de perguntas vazias e desconexas. Mesmo assim, do alto de sua educação, inteligência e bondade, passou a comentar aqueles questionários, elegantemente.

-Procuro aproveitar bem o tempo que Deus me deu. Concilio essas atividades as quais exerço na maioria das vezes à noite, com o prazer que sinto em ficar aqui sentado nesse caixote, falando, ouvindo e aprendendo com vocês. Não obstante muitos de vocês ainda pensarem que eu sou um louco, creio que a vida tranqüila e sossegada que levo me propicia algum equilíbrio que de certa forma, me coloca em estágio distante dessa classificação.

Quanto ao caixote vazio e de possuir alguma coisa que eu poderia estar vendendo aqui, quero informar que não tenho tantas necessidades materiais assim. A maior necessidade que tenho hoje e que venho, para a minha felicidade, suprindo a algumas décadas, é a de estar aqui, fazendo amigos. Isso é o que mais me conforta já que durante toda a minha vida, vivi só.

No que se refere sim, ele é meu. Comprei-o ainda na adolescência. Lá onde durmo e aqui onde falo que escolhi para passar a vida para depois morrer com dignidade. A importância da vida, caro amigo, -dizia ele ao interlocutor mais próximo-, não está em ganhar dinheiro o tempo todo, mas em saber usufruir do tempo que a vida, muito curta por sinal, nos oferece. Muitas vezes o que pode parecer loucura ou esquisitice para muitos, como o fato de eu passar, horas a fio, sentado neste caixote, em frente a este mercado, é para mim a maior das diversões e prazeres da vida. Ai você me diz: Cada louco com a sua mania.

E eu lhe respondo:

Quem sabe!

É...

Por vezes, as aparências enganam. É dizer: não julgues pelas aparências. Nem sempre elas estão com a razão.



Seu Quincas


 
Seu Quincas ao contrário de todas as “joias do brejo” que serão aqui retratadas, não obstante ter se tornado um autentico brejeiro, não nascera no Brejo das Almas. Vivia ali há muito tempo aonde chegara ainda rapazinho, proveniente de Grão Mogol, sua terra natal.

Em Brejo das Almas, hoje Francisco Sá, “beldade do norte de minas”, Seu Quincas, ou melhor, Joaquim Dias de Oliveira Bicalho, -era este o seu nome de batismo- tornara-se fiscal da prefeitura, tendo ocupado esta função por inúmeras vezes a qual lhe rendia 20% sobre toda a taxa de arrecadação do município.

Exímio na arte de “riscar a binga” para acender seu cigarrinho de palha carregado pelos melhores fumos produzidos naquele torrão de meu Deus, dedicava-se nas horas vagas que, diga-se de passagem, não eram poucas, ao curandeirismo e a de contador de histórias as quais invariavelmente o tinham, quase que sempre, como o protagonista ou personagem principal, que, como todo final de histórias de super-heróis, estava ele sempre por cima.

Mas uma dessas histórias que ele contava e que certamente era verdadeira, ratificada que era pelo vicio que ele mantinha de tomar, entre uma conversa e outra, grandes pitadas de bicarbonato e também por “dar nome aos bois”, o colocava em uma posição não muito favorável a dos super-heróis. Pelo menos nesta história ele não se saiu bem.

Ei-la:

Foi lá em Grão Mogol, -dizia Seu Quincas-, quando eu era rapazinho. Morrera o Vigário da Freguesia o Padre José Tiago. Um entra e sai dos diabos na casa do morto que era muito querido na cidade. Naqueles tempos era hábito e costume da Igreja de Roma que os defuntos padres fossem lavados com água dos rios que depois de usada ficava guardada em um pote de barro por sete dias quando seria lançada de volta aos rios.

Cheguei à casa paroquial onde o Padre estava sendo velado, tinindo de fome e sede. Morávamos nos arrabaldes de Grão Mogol. Visualizei, ao longe, uma preta velha, serviçal da casa, que em gestos de desespero, com as mãos na cabeça, entrava e saia da casa rezando, em prantos compulsivos.Chorava copiosamente e entre um soluço e outro, entre uma reza e outra, resmungava: “Diabos, com tanta gente ruim pra morrer Deus me vai levá justo o sô vigáro. E adespois ainda dizem que Deus é Justo. Home bom como sô pade, nunca mais vai tê na terra!”

Cumprimentei-a que entretida com sua dor e lamentos, sequer notara ali a minha presença. Dirigi-me a uma sala grande onde, sobre uma mesa cercada por velas em castiçais de ouro, jazia, frio e inerte, o corpo daquele que fora em vida, o benfeitor dos muitos fieis de então. À sua cabeceira, um outro padre celebrava as recomendações de praxe, para que a alma do morto encontrasse lá no além o repouso merecido. Ao seu redor, uma multidão de mulheres velhas com lenços pretos sobre as cabeças acompanhava o terço e ao final de cada ave-maria, respondiam em voz alta ameeem! Entre elas, naturalmente, muitas carpideiras, claro. Elas são partes integrantes de qualquer velório e naquela época não era diferente.

Enquanto isso, um grupo de homens alegres pela “pinga do mogol” palestravam num canto um pouco mais distante da cerimônia. Por mais que eu tenha forçado marcar ali a minha presença, ninguém me deu atenção. Estavam todos compenetrados. Enquanto isso a sede apertava e todos nós sabemos que “quando a sede quer, ela consegue ser mais forte que a fome”. Nesse ínterim, cutuquei um daqueles gaiatos:

- “Ancê num sabe onde é que eu acho água pra beber?. Num agüento mais de sede!”

Antes mesmo de eu terminar a frase o gaiato, pau dágua, como se para se livrar logo de mim, apontou para um dos cantos onde pude visualizar um velho pote de barro que com certeza se encontrava o tão precioso liquido que saciaria a minha sede. Mais que depressa fui até lá. Um amassado e baboso copo de alumínio, não sei por que diabos, ali estava, ao lado do pote. Introduzi-o, desesperadamente, e só depois de haver ingerido vários copos de água, pude me ver livre daquela sede.

Não contava com o tremendo revertério que aquele meu inocente gesto, dali a alguns instantes me causaria.

Comecei a suar frio, enquanto a água dava voltas no estômago. Parecia não ter descido. Tinha a sensação de um grande dilúvio. O meu corpo ficou flácido. As pernas bambas e o meu cérebro não conseguia emitir nenhum sinal de comando. Sem compreender quais eram os motivos daquela reação, fui me queixar com a mesma preta velha. Para que me desse atenção, tive que dar-lhe um beliscão nas polpudas nádegas.

- “Uai, sinhozinho. O que é que tu quer de mim?”

- “De você eu não quero nada!”. Só gostaria que me informasse o que é que vocês colocaram naquela maldita água que está naquele pote, ali!” – disse-lhe, apontando com o indicador para o pote.

- “Apusquê ocê está me preguntando isso? Por acaso ocê num é católico e num cunhece os rito da santa madre igreja?”. Naquele pote que ocê está me apontando é o pote que guarda as água benta que lavaram o corpo de sô pade Zé Tiago. Ela está lá para ser lançada no rio daqui a sete dias!”

Antes que aquela preta velha concluísse aquela inesperada informação, meti os dois dedos na goela e em um só tranco expeli aquele maldito liquido do qual até hoje, como se por castigo, sinto ainda o gosto que só é amenizado quando tomo bicarbonato...

E, num gesto mecânico, finalizava a frase metendo a mão no bornal de onde tirava mais uma pitada daquele “pó sagrado” que por alguns instantes o fazia esquecer do triste episodio vivido em tempos longínquos em sua Grão Mogol.

É...

Por vezes, a mesma água que os outros julgam como benta para eles, pode nos causar os mais sérios transtornos.


Zé Alves

Link: Zé Alves

Com várias fazendas de gado e plantações a perderem-se de vista que ocupavam quase todo o território do velho São Gonçalo do Brejo das Almas, Zé Alves foi, indubitável e incontestavelmente, o grande patriarca do lugar. A pedra fundamental do velho brejo foi fincada com muita luta, denodo e bravura, por aquele vaqueiro matuto de falar pausado, mas firme e direto. Possuía grandes manadas de gado as quais vendia, tornando-se o maior comerciante agropecuário de todo o norte das minas gerais.

José Alves da Silveira, sim é esse seu nome completo de batismo, constituiu ali juntamente com dona Antoninha, sua dedicada e mui prendada esposa, numerosa família tendo todos os filhos, a exceção de um deles, seguido os passos do pai na lide de comprar e vender fazendas e gado de corte.

Todos os filhos do velho Zé Alves eram fazendeiros, apenas Jacinto Alves da Silveira, um de seus filhos que mais tarde se encarregaria de dedicar-se de corpo e alma ao desenvolvimento de Brejo das Almas, acumulava as atribuições de fazendeiro com a vida cultural, não obstante não ter obtido em toda a existência mais que seis meses de instrução escolar. O resto da historia desse grande brejeiro todos conhecemos e será, uma vez mais, tratada a parte, já que hoje estamos nos referindo ao seu pai.

Zé Alves viajava diariamente para fechar negócios que culminavam sempre com a compra ou venda de novas manadas de gado. Grande tino voltado para esse tipo de comércio, tornara o velho Zé Alves o homem mais rico de todo o Brejo das Almas. Praticava também nas poucas horas vagas, a caça de veados, onças e outros animais de médio porte, que abatia de cima de uma velha espera onde, com toda calma do mundo, permanecia horas e as vezes noites inteiras sobre uma arvore até que os infelizes surgissem para o fim, inexorável.
 
Mineiro até a medula, caipira de formação e analfabeto por convicção, travava em suas quase sempre bem-sucedidas negociações, antes de tudo, uma verdadeira “peleja” com a Língua Pátria, deixando muitas vezes seus diálogos quase incompreensíveis aos seus interlocutores. Além disso, o velho Zé Alves era do tipo “pavio curto”. Não se utilizava de meias palavras nem mesmo quando o único interessado em fechar determinado negócio era ele próprio. Mesmo sendo mineiro, não aceitava o nosso mineirísmo. Ao contrário, combatia-o, severamente. Não aceitava desculpas ou qualquer justificativa. Tratou com ele tinha que cumprir.

Certa vez foi realizar uma grande venda de gado de corte lá pelos lados de Ouro Preto, terra de seus ancestrais. Ao longe, ao vê-lo surgir, o fazendeiro Nico da Rosa, para o qual Zé Alves venderia a grande manada, abriu-lhe os braços gesto seguido de um grande sorriso colocando à mostra a perfeita dentição matuta coberta do mais puro ouro das gerais, cujos dentes reluziam à distancia, foi logo proferindo as palavras de boas vindas, pratica e costumes daquelas placas naquela época.

- “Olá, compadre Zé. Sejas bem-vindo a minha humilde casa que é muito pequena, mas nós aqui estamos com o coração grande e aberto para recebê-lo!”.

- “Uai, cumpade Nico, que diabos é isso de casa pequena e coração grande e aberto? Nóis aqui viemo a nigocio e num vamo nem entra na sua casa e quanto ao seu coração, pode fechá... Num deixa ele aberto não apusquê pode criá bichios e inframá e nois aqui num é médico. Viemo cumo eu já disse, trabaiá e no cumercio de gado num tem lugá pra frescruras. As trezentas cabeça de boi é oito contos de réis e num tem cunversa!”

- “Calma, compadre. Nós vamos negociar, com toda certeza... mas é minha obrigação a qual exerço de muito bom grado, fazer as honras da casa oferecendo hospedagem, água e comida para o senhor e seus camaradas, até porque sabemos que a distancia entre o Brejo das Almas até Ouro Preto, onde estamos, é muito longa.

Zé Alves, com um pé apoiado em uma trave da porteira, permanecia do lado de fora, enquanto o compadre Nico segurava a tramela do lado de dentro tencionando abrir-la.

“A distança é longa mesmo, cumpade, mais nois está aqui. Vamos antonces entrá nas nigociação, apusque pelo qui tô vendo num vai ser fácil. O sinhô pensa qui falano bunito vai mi drobá... mais eu num vô cedê. Esse gado que eu truxe foi todo ingordado com o melhó capim colonião que já se produziu no brejo...”

Não tinha mesmo como engatar um dialogo que não dissertasse única e tão somente sobre a compra e a venda do gado. Assim sendo, não restou a Nico da Rosa outra alternativa senão partir para o ataque.
Mineiramente, passou a fazer disfarçados comentários no intuito de depreciar um pouco o produto para depois dar o bote e compra-lo por um valor menor.

- “Pois é, compadre, vejo que apesar da boa qualidade de seu capim colonião, seus bois, dessa vez não estão muito gordos como os da manada que eu lhe comprei na ultima vez.”

- “Antonces eu vou levá eles de vorta pro brejo pra engordá mais e quando eles estourá eu lhe trago!”

- “O que é isso, compadre? Só estou lhe dizendo que os bois desta vez não estão gordos como os anteriores... é só isso!”

- “Já entendi. Oncê quer é desvalorizá meu gado prá eu lhe vendê a preço de banana. Por isso mesmo agora eu só lhe vendo os meus bois pelo drobo. Meno de dezesseis mir conto de réis eu num vendo procê. É pegá o largá!”
Não sei como terminou esta história mas, cá prá nós, a diferenças dos valores culturais e monetária para a venda da manada, entre ambos, era muito grande. É possível que nenhuma das partes tenha logrado êxito.

É...

Por vezes, como falamos no Brejo, “dois duros não levantam muros”. Ou ainda, “dois bicudos não se beijam”.


Benjamin Figueiredo

Link: Benjamin Figueiredo


Entre os cinco últimos prefeitos que ocuparam a Prefeitura de Francisco Sá no regime intervencionista, ou seja, Dr. Antonio Tenório, Dr. Benjamim Marinho Figueiredo, Cel. Francisco Ataíde, Dr. Othon Novais e Dr. Aníbal Serra, antes de chegarmos ao grande Feliciano Oliveira no inicio do período de redemocratização do Brasil, farei um breve relato nesta minha crônica do mês de Setembro-2015 á figura do Belo-horizontino de nascimento e Brejeiro por convicção Dr. Benjamim Marinho Figueiredo não só em virtude da relevância de sua bem-sucedida administração, mas, também, ou quiçá, principalmente, pelo seu imenso e incondicional amor que sempre demonstrou para com o Brejo e sua gente, por que nem mesmo depois de ter sido vitima de traições políticas de um deputado antigo correligionário seu, que serviram para abreviar a sua gloriosa gestão no auge de grandes realizações, radicou-se em Montes Claros de onde obtinha informações da política e administração do Brejo, mantendo-se sempre á postos para colaborar a qualquer momento com quem quer que fosse o prefeito, somente pelo simples desejo de seguir servindo ao nosso povo.

Por várias vezes, em noites caladas e silenciosas, humilde e discretamente, sem ser notado, visitava o Brejo das Almas, àquela altura Francisco Sá, postando-se em frente a serra do Catuni de onde observava as paisagens adjacentes, retornando, invariavelmente á Montes Claros antes do amanhecer.

A indicação de Benjamim Figueiredo para Prefeito de Francisco Sá foi feita pelo Governador do Estado de Minas Gerais Benedito Valadares. Naquela época esta era uma das prerrogativas dos governadores de estado. Tudo normal, não fosse á forma confusa, incoerente e desastrada do governador ao tomar sua decisão que acabou por tumultuar todo o processo da indicação e talvez residam ai ás resistências e dificuldades que Benjamim enfrentaria uma vez empossado Prefeito, que certamente contribuíram para aflorar invejas e vaidades alheias que culminaram com a interrupção de sua excelente gestão.

Contrassenso?

Não!

Realidade.

Sou um modesto executivo da Engenharia. No entanto, entendo, que sempre que alguém se propõe a escrever alguma coisa, até mesmo por respeito aos poucos que o leem, não pode, jamais, ocultar os fatos que causaram suas consequências como também deve se abster de dourar a pílula dando ao personagem retratado virtudes que não teve ou tem. Lealdade aos fatos e respeito a quem lê são premissas básicas de uma formação razoável.

Antes de optar pela indicação de Benjamim Figueiredo, o Governador Benedito Valadares havia dado a sua palavra ás principais lideranças politicas do Brejo, divididas em duas correntes opostas sob o comando dos irmãos Dias, de um lado João de Deus e do outro Gentil Dias apoiado por Osmani Barbosa, (PSD – UDN), garantindo que o indicado seria Filomeno Ribeiro, da região e aceito por todos ali por unanimidade. A robustez e comprometimento de um líder político local daquela época não se media com qualquer aparelhinho “Xing-ling” como se faz hoje. O cara valia o quanto pesava e o seu peso era aferido pela palavra dada e cumprida. Se o sujeito tinha crédito, se sempre cumpriu com a palavra, todos nele confiavam cegamente até o dia em que deixasse de cumpri-la.

- Fulano falou que até o dia 32 de dezembro deste ano vai fazer jorrar ouro do morro do mocó!

Todos acreditavam. Mesmo sabendo que o mês de dezembro só tem 31 dias, preferiam aguardar até o último dia do mês para ver o que aconteceria e só depois disso é que iam rever os seus conceitos de credibilidade sobre o tal fulano.

Foi assim que quando o Governador Benedito, - que evidentemente, não era o santo porreta que conhecemos e que jamais deixou de cumprir uma promessa -, roeu a corda, grande frustração causou a todos os políticos que tinham como liquido e certo a indicação de Filomeno Ribeiro. A decepção era geral não só por que ninguém ali conhecia o novo indicado, mas principalmente pela vergonha e orgulho ferido das lideranças que já haviam se comprometido junto ás suas bases onde disseminaram a indicação infalível de Filomeno que aquela altura já era saudado como o novo prefeito de Francisco Sá. Por onde ele passava era recebido com muita pompa e reverência. O balde de água gelada que o governador “furão” jogou na gente Brejeira e seus lideres com aquela indicação inusitada causou muitos constrangimentos a todos especialmente a Filomeno que viu escapar por entre os dedos a grande oportunidade de ser Prefeito, e ao próprio Benjamim que desconhecia aquela malfadada articulação de bastidores. Mas também serviu para lhe despertar a consciência para a grande responsabilidade que viria assumir assim como para a luta feroz que teria pela frente. Ele tinha de reverter aquela situação de insegurança que pairava sobre sua pessoa apenas por não ser do lugar. O primeiro passo seria se tornar conhecido do povo Brejeiro, pois assim ganharia sua confiança e a melhor maneira de trazer o povo para o seu lado para que ele pudesse se mostrar por inteiro e revelar as suas intenções de realizar o seu melhor seria conquistando, antes, os seus lideres. Foi o que ele fez. Aos poucos e com muita humildade o Prefeito Benjamim Marinho Figueiredo ia pavimentando o seu caminho construindo Obras de impacto social irrefutável. É de sua gestão a implantação do primeiro sistema de abastecimento de águas de Francisco Sá, entre outras. Madrugador, trabalhador contumaz, polido, fluência verbal perfeita, possuía um marketing pessoal de dar inveja aos marqueteiros políticos de hoje, que ao contrário do grande Benjamim, por não terem o que mostrar, mentem, descaradamente.

Havia, entretanto, outra liderança ali. Aliás, diga-se de passagem, a mais poderosa da região, a qual não se simpatizava muito com Benjamim. Jeito matreiro, de pouco falar, apesar de grande articulador, riquíssimo, proprietário de muitas fazendas sendo a principal delas a Fazenda Burarama, hoje uma linda e progressista Cidade que leva o seu merecido e honroso nome. Exercia poder absoluto sobre os destinos do Brejo das Almas, Montes Claros e adjacências. Ele mandava prender e soltar. Era, no entanto, de boa índole e benevolente e ao que se sabe nunca abusou de seu poder e autoridade sobre os menos favorecidos. Parecia justo. Mas estava na política para onde levou também seus dois filhos Pedro e Antonio. Seu nome? Enéas Mineiro de Souza, ou Capitão Enéas. Cito-o neste final apenas para lembrar que no episódio que culminou com a exoneração do Prefeito Benjamim á pedido de um deputado de tendência duvidosa que fundamentou o seu argumento ao fato de ser Benjamim um prefeito “realizador, mas, espalhafatoso”, (referia-se a divulgação que dava ás suas Obras), o Capitão Enéas preferiu não tomar partido. Não se lançou mão sequer de uma bazuquinha de seu poderio bélico. Até ai nada demais se não tivesse na sequência, ou á partir da substituição de Benjamim por Francisco Ataíde, seu correligionário, ter sido ele, junto com Pedrão, seu filho, beneficiários políticos de uma herança abortada no momento em que mais se realizava em prol do povo brejeiro, profícua, arrojada e transparente.

Os homens passam, mas suas histórias ficam.

E tenho dito!

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